sábado, 13 de junho de 2009

Bom Retiro







Bom Retiro, a multietnia na região central da cidade
Conheça o bairro dos "sacoleiros", dos judeus, italianos, árabes, gregos e coreanos
O cosmopolitismo que São Paulo granjeia, nos condomínios de luxo com nomes estrangeiros dos bairros nobres, floresce sem glamour no Bom Retiro. Entre pensões e cortiços, restaurantes de vários credos e igrejas de vários sabores, o Bom Retiro respira ares de uma cidadania mundial de subúrbio. E também respira o ar degradado do centro, a relevância de seu pólo comercial e a vinda de sacoleiras de todos os cantos do País.
Ainda no século 19, bem antes dos ônibus trazendo turistas de compras, chegaram os italianos. Esses imigrantes se instalaram no Bom Retiro a partir de 1880, para trabalhar como operários nas indústrias que começavam a se instalar na região. Viraram versos por Juó Bananére, O Studenti du Bó Ritiro, que transcreveu o paulistaliano, a língua mezzo português mezzo italiano que a colônia ajudou a criar.
Bananere era o pseudônimo do brasileiro Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, que estudou na Escola Politécnica, onde atualmente funciona a Fatec, entre 1913 e 1917. Ali, conviveu com muitos studentis.
Mas nessa época, a presença italiana já começava a minguar, ou porque os imigrantes foram saindo do bairro ou porque já haviam se integrado à população. Como lembrança, deixaram o nome na rua dos Italianos, igrejas e escolas católicas.
Estrutura e apoio
Foi quando começaram a chegar os judeus. Vindos de diferentes países do Leste Europeu – Polônia, Rússia, Lituânia, Romênia, Hungria. Primeiro lentamente, a partir da Primeira Guerra, eles foram ocupando o Bom Retiro. Quando ocorreu o maior afluxo, devido à perseguição nazista durante a Segunda Guerra, os que chegavam já encontravam no bairro uma estrutura com sinagogas, escolas, restaurantes e pensões, e o apoio de outros judeus.
O professor Marcos Smaletz, de 66 anos, já nasceu no Brasil, filho de imigrantes lituanos. Além de ter morado a vida inteira no Bom Retiro, ele tem uma forte ligação com a comunidade judaica: faz parte da diretoria da Federação Israelita do Estado de São Paulo e é presidente da sinagoga Beth Itzchak El Chonon, na rua Prates.
“Os judeus que vieram para cá não eram agriculturores. Então, eles entraram no comércio, especialmente confecções”, conta Smaletz. Vem daí um tipo de construção característico do Bom Retiro: prédios baixos, de dois ou três andares, com o comércio no térreo, que simbolizam a estrutura familiar com que eram tocados os negócios.
Abrigo multiétnico
E não eram apenas os italianos e judeus: o bairro foi o abrigo escolhido por armênios, árabes, gregos (tanto que um dos mais famosos restaurantes gregos de São Paulo, o Acrópole, fica na rua da Graça), poloneses, japoneses, búlgaros.
O caldeirão multiétnico não ferveu sem respingos. Marcos Smaletz lembra: “o judeu é um povo pacato, mas também precisava responder a provocações. Eu mesmo, quando estudava no Renascença, nós voltávamos para casa para almoçar, para voltar para a escola à tarde. Nesse caminho, os garotos do Prudente de Morais [escola estadual na avenida Tiradentes] nos atacavam com pedras, apenas porque éramos judeus”.
Influência, segundo ele, da Igreja Católica. “A igreja, naquela época, ainda guardava resquícios de anti-semitismo”, aponta. Muitos dos judeus do bairro também evitavam falar publicamente em iídiche – o idioma das comunidades judaicas no centro e leste da Europa.
Quem também teve que se afirmar diante das diferenças culturais foi o filho de imigrantes japoneses Luís Sadayoshi Miyashiaro, de 62 anos. Estudou no Bom Retiro, na escola estadual Marechal Deodoro, trabalhou na rua da Graça, mora no bairro há tempo o bastante para lembrar de várias de suas transformações.
“Eu queria mostrar que era brasileiro igual aos outros”, afirma. Para isso, jogava futebol – é bom jogador até hoje – nos muitos campos que existiam nas várzeas do Tietê, e não beisebol, que era considerado o esporte dos japoneses. “Hoje existe só um ou outro campo”. Gostava de samba – ainda dança e compõe. “Vivi muito o carnaval de rua. Na época, existia um sentimento anti-americano muito forte. E eu não queria nem saber de rock, era como na música do Jackson do Pandeiro, Chiclete com Banana”.
E também comprou muita briga. “Fazia pouco tempo do fim da guerra, em que os japoneses tinham sido inimigos. Talvez por isso os pais orientassem os filhos a não aceitar provocações, criou aquele padrão do japonês que dá uma risadinha e fica quieto”, especula.
Primeira parada
O Bom Retiro virou a primeira parada dos imigrantes que chegavam a São Paulo por causa da proximidade com a Estação da Luz, construída pela São Paulo Railway – a “inglesa” – entre 1895 e 1901. A expansão ferroviária foi uma das conseqüências da riqueza do café, que redesenhou a cidade e proporcionou um vertiginoso crescimento populacional. O período é considerado a segunda fundação de São Paulo. Mas a cidade seria refundada pelo menos mais uma vez ainda, tendo o Bom Retiro como testemunha.
A segunda fundação tem como registro os casarões neoclássicos das largas alamedas dos luxuosos Campos Elíseos e construções imponentes, como o Palácio dos Campos Elíseos, construído em 1899 pelo fazendeiro Elias Chaves, e que foi residência dos governadores e sede do governo do Estado, entre 1912 e 1965.
Hoje, cada fantasma de barões de café convive, nas velhas mansões transformadas em cortiços, com numerosas famílias, que de tão preocupadas com a falta de espaço, as condições precárias de higiene, o aluguel a pagar, sequer os notam arrastando correntes.
Além da estação de trem, a região abrigou, até 1982, o terminal rodoviário. Assim, boa parte dos migrantes nordestinos também se instalou por lá. O aristocrata Campos Elíseos e o proletário Bom Retiro se encontram nos becos e cortiços que abrigam parte desses novos egressos.
“Eu vim, em 1988, do interior de Pernambuco, e fui morar em uma casa de cômodos na rua Júlio Conceição”, recorda Helena Domerina de Lacerda, de 49 anos. “Não deu para me acostumar. Eram 14 famílias dividindo um banheiro e um chuveiro. Eu estranhei muito, nunca tinha dormido em um lugar com tantas pulgas, baratas, ratos”. Ficou três meses nessa casa, voltou para o Nordeste e, em 1989, para São Paulo novamente. Morou um tempo em outra casa, na mesma rua, mas em melhores condições, enquanto trabalhava em confecções do bairro.
No fim do ano, Helena comprou a chave de uma casa na rua Joaquim Murtinho. “Eu comprei de boa fé, mas o moço me vendeu de má fé”, explica. A casa havia passado por um incêndio e estava abandonada. Na casa de seis cômodos, a costureira instalou os filhos e outros parentes. Pouco tempo depois de se mudar, ela descobriu que o imóvel tinha donos. “Eu não sabia o que era despejo, o que era ordem de despejo”. Pesquisando nos cartórios, Helena encontrou o registro do imóvel, que estava em espólio.
“Embora minha casa fosse independente, não fosse um cortiço, eu convivi muito com essa realidade, através dos meus vizinhos”, afirma. Em 21 de novembro de 1990, parte dos moradores foi despejada. A data deu nome à Associação Comunitária da Rua Joaquim Murtinho, fundada por Helena.
Com o apoio dos movimentos de moradia, ela foi à Assembléia Legislativa e, há poucos anos, conseguiu um acordo com os proprietários. A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), do governo do Estado, comprou o imóvel e outros ao lado. As casas já foram demolidas e está sendo construído um prédio com 34 apartamentos. Os antigos moradores foram cadastrados para financiar os apartamentos. Enquanto isso, aguardam espalhados pela cidade – Helena atualmente mora com filhos e netos na Zona Leste.
A convivência e o engajamento nos movimentos populares não terminaram com essa vitória. “Só não freqüento mais as reuniões, encontros, atos públicos por questões de saúde”. Mas ela ainda acredita que os moradores de cortiço – que pagam, em geral, de R$ 150 a R$ 200 por um quarto abafado, sem janelas e com condições sanitárias precárias – devem se unir pelo direito a moradias mais dignas.
Pólo da moda
O agravamento da miséria e dos problemas sociais são os reveses da mais recente reinvenção do Bom Retiro e de São Paulo. O bairro, que há muito é referência no comércio têxtil, ganhou o status de pólo da indústria da moda.
Nos anos 1980, os judeus passaram a se desfazer das lojas que tinham no Bom Retiro. “Os mais velhos se aposentaram ou morreram e os filhos, que tinham ido para a universidade, não queriam comandar os negócios dos pais. Foram saindo do bairro, mudando para Higienópolis ou Jardins. Assim, as lojas foram sendo vendidas”, diz Marcos Smaletz. Instituições tradicionais, como o colégio Renascença, deixaram a região.
Quem comprou foram os coreanos. A imigração coreana teve seus primeiros passos no Brasil em 1963, mas se concentrou nos anos 1980. Assim como os judeus, eles foram favorecidos pelos compatriotas que chegaram antes e estabeleceram igrejas, escolas e serviços direcionados.
O que antes era comércio familiar, se tornou estrutura empresarial. “Uma das coisas que a gente nota é a mudança nas vitrines da rua José Paulino, mais sóbrias na época dos judeus e mais ousadas com os coreanos”, repara Rachel Green, que trabalha há 19 anos na Oficina Cultural Oswald de Andrade – no prédio que antes abrigava a Faculdade de Odontologia. Ela também observa o aumento no número de agências bancárias na região, o que atribui à maior circulação de dinheiro. Luís Miyashiaro acrescenta que a compra de imóveis pelos coreanos valorizou casas e apartamentos do bairro.
Atualmente, o Bom Retiro é praticamente um bairro coreano. Eles representam cerca de 70% das 1.200 empresas do Bom Retiro, segundo dados da Câmara de Dirigentes Lojistas do bairro. Os coreanos mudaram a fisionomia e o espírito da região, mas não sua alma. Continua sendo um dos melhores retiros para quem se aventura a fazer São Paulo.




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